Por Larry
Romanoff, February 07, 2022
No início da década de 1980, milhares de
canadianos foram infectados pelo HIV e, pelo menos, mais 60.000 ou mesmo mais,
com hepatite C, a partir de produtos de sangue contaminado distribuídos pela Cruz
Vermelha canadiana que era responsável pelo sistema de doação de sangue do
país. Esta instituição assumiu a maior parte da culpa pela
calamidade da saúde pública, mas houve muitas outras envolvidas no escândalo,
produzindo uma teia de decisões desastrosas fortemente contaminadas com uma
negligência disfuncional que confinava – e, por vezes, atravessava - a linha da
criminalidade. No final, ao enfrentar múltiplas acusações de negligência
criminosa, a Cruz Vermelha viu-se
privada das suas responsabilidades na recolha de sangue e foi criada uma
nova agência federal, com biliões de dólares a serem pagos como indemnizações
às vítimas.
A
causa principal deste enorme desastre foi a existência de uma indústria
médico-farmacêutica não regulamentada e descontrolada nos EUA, que resultou na
comercialização, por parte de empresas privadas, num negócio da recolha e
distribuição de sangue com a maximização do lucro. Um dos resultados do sistema americano foi a recolha de sangue nas
prisões americanas, a mais arriscada de todas as fontes, mas com uma
população cativa e um ambiente fundamentalmente criminoso perfeitamente
adaptado ao estilo das empresas farmacêuticas americanas. Na altura, o Canadá
importava muito sangue dos EUA, principalmente através de uma empresa corretora
de sangue americano chamada Continental Pharma-Cryosan, que vendia os seus
produtos a uma empresa fraccionadora de
sangue canadiana, denominada Connaught Laboratories, que era então uma empresa
estatal canadiana. A Connaught tornava a vender o sangue e os
produtos de sangue à Cruz Vermelha Canadiana para distribuição final a
hospitais e a outras instalações médicas.
Em
última análise, parece que os Laboratórios Connaught assumiram a maior parte da
responsabilidade pela tragédia e ter-lhes-ia sido imputada a maior parte da
culpa. Em 1971, mais de dez anos antes
desta catástrofe, o governo canadiano tinha proibido a prática da recolha de
sangue nas prisões devido ao elevado risco de infecções e a Connaught estava
plenamente consciente deste facto, pelo que a compra de sangue colhido nas
prisões americanas não era uma alternativa aceitável. As remessas de sangue
dos EUA não eram especificamente identificadas como sendo originárias de
prisões americanas, sendo o expedidor meramente identificado como
"ADC", sem especificar que o acrónimo significava ‘Arkansas
Department of Corrections’ (Departamento Correcional do Arkansas) - o sistema
prisional. No entanto, a documentação de apoio que incluía relatórios da FDA
dos EUA, identificava claramente a fonte, mas os executivos da Connaught
afirmaram que não se deram ao trabalho de os ler. O Director do fraccionamento
do sangue da Connaught, um Dr. Anthony Magnin, testemunhou que a recolha de
sangue dos prisioneiros "não era considerada como um problema
inerente", e que os documentos de identificação ou não eram lidos, "ou eram lidos e não eram cumpridos em
conformidade com esse regulamento".
As
provas nas audiências judiciais indicaram que, durante anos, as salvaguardas e
os controlos da Connaught foram mais ou menos completamente inexistentes. A Connaught poderia ter iniciado verificações no
local, sobre as fontes dos seus envios de sangue e poderia ter efectuado as
suas próprias verificações sobre a pureza dos envios, mas optou por não o
fazer, confiando nos relatórios da FDA dos EUA que não tinham qualquer valor
excepto identificar a fonte, porque a FDA não efectuou verificações ou supervisões
dignas de menção, sendo essencialmente todo o procedimento dos EUA, uma
operação com elevado índice de criminalidade não supervisionada. O Serviço de
Saúde dos EUA tinha desencorajado fortemente a recolha de sangue de áreas de
alto risco e, embora a prática não fosse
tornada ilegal, este sangue já não era vendido nos EUA, por conseguinte, era
exportado. Este facto possibilitou à Connaught importar e vender grandes
quantidades de sangue que tinha sido rejeitado pelas autoridades americanas.
A empresa Continental Pharma foi informada pela FDA, em
Junho de 1983, de potenciais problemas com o plasma que tinha fornecido a
Connaught, mas não iniciou uma recolha e não informou Connaught
senão vários meses mais tarde. Entretanto, uma
investigação do FBI determinou que a Continental Pharma tinha cometido
numerosas ilegalidades e violado muitas leis, mas parece que não notificou o
Canadá. E, por seu lado, aparentemente,
a RCMP canadiana ((Royal Canadian
Mounted Police) não informou os
americanos quando a sua investigação revelou que a Continental Pharma tinha
rotulado falsamente o sangue como sendo originário de dadores suecos, quando,
de facto, esse mesmo sangue tinha sido extraído
de cadáveres russos.
Mas
a podridão foi ainda mais profunda e não foi só a Continental Pharma que
atravessou a linha da negligência até à criminalidade. Em 1983, um executivo superior de Connaught escreveu uma carta para
assegurar à Cruz Vermelha canadiana que nenhuma das suas fontes de plasma
sanguíneo estava localizada "em centros populacionais dos EUA que
demonstraram suportar um risco elevado de SIDA" e mais ainda, que a Connaught
estava "profundamente consciente do risco potencial da SIDA para os
hemofílicos". Estas declarações eram claramente falsas, visto que um
mês antes, a empresa tinha recebido documentos que provam que tinha adquirido
sangue e plasma recolhidos nas prisões americanas e que também os tinha
adquirido directamente nas prisões. Não só isso, a Connaught estava ao mesmo tempo a comprar fornecimentos de sangue
directamente de um banco de sangue em São Francisco, que estava localizado no
centro de Skid Row, que estava na lista de alerta da FDA como sendo uma das
áreas de maior risco do mundo para o HIV. Para a Connaught ter dado estas
garantias à Cruz Vermelha à luz dos factos reais, na melhor das hipóteses, era
criminosamente irresponsável.
Embora
os testes de HIV não fossem inicialmente considerados precisos, havia testes eficazes
que teriam detectado a maioria dos casos de Hepatite C. Aliás, depois de
existirem provas crescentes de que o HIV e a Hepatite estavam a ser
transmitidos através de produtos de sangue contaminados, a Connaught não fez
qualquer esforço para localizar ou informar aqueles que poderiam ter sido
infectados. Além do mais, tinha sido desenvolvido um tratamento térmico para os
produtos de sangue que teriam matado as infecções residentes, mas a Connaught
negligenciou esta medida e, no entanto, continuou a vender o seu stock de
produtos potencialmente contaminados. Quando os países desenvolvidos começaram
a virar-se em massa para os novos produtos tratados termicamente, a Connaught
começou a olhar para as nações em desenvolvimento como “mercados possíveis”
para os seus produtos contaminados. Durante o inquérito, surgiram memorandos
confidenciais da empresa que sugeriam que o Irão e a Espanha eram
"mercados possíveis" e sugeriram que "poderiam estar em posição
de vender seis milhões de unidades à França". Aparentemente, então tiveram dúvidas e decidiram que o seu
"produto actual contaminado não deveria ser oferecido para venda a países
desenvolvidos".
O
escândalo do sangue explodiu primeiro no Canadá, de um processo judicial
instaurado nos EUA por um prisioneiro que alegava ter sido infectado com
hepatite C devido a transfusões obtidas através do sistema prisional. Foi então
que a FDA emitiu novas directrizes e informou o corretor da Connaught, a
empresa Continental Pharma da certeza, em essência, da contaminação. Após uma
demora de meses, a firma notificou a Connaught, que se viu então obrigada a
informar a Cruz Vermelha Canadiana, que depois cancelou o seu contrato com a Connaught.
Mas nenhuma das partes iniciou uma recolha do sangue contaminado, preferindo
visivelmente "suportar as dificuldades” e avançar lentamente para produtos
mais seguros. O cancelamento do contrato
com a Cruz Vermelha foi naturalmente uma grande crise para a Connaught, visto
que esta era a sua principal fonte de receitas mas, com a ajuda da pressão do
governo, o contrato foi renovado.
A
Cruz Vermelha canadiana foi alvo de críticas substanciais e mesmo violentas,
principalmente pela sua cobardia de não ter informado o público do seu sangue
contaminado, por continuar a distribuir produtos de sangue contaminado em
silêncio e por negar a verdade quando a mesma se tornou pública. Todas as partes envolvidas dedicaram a sua
energia a procurar a sua própria defesa e a tentar conter o escândalo em vez de
proteger e informar o público, preocupando-se mais com a responsabilidade
pessoal e as recriminações do que com o enorme número de pessoas infectadas e
moribundas. Houve alguma confusão (em que todas as partes envolvidas tentaram
colocar a culpa) na medida em que o governo canadiano exigia apenas, que o
sangue adquirido de fontes americanas fosse originário de locais aprovados pela
FDA. Nos EUA não era ilegal recolher sangue das prisões e, embora este produto
já não estivesse a ser vendido a nível interno, ainda mantinha a aprovação da FDA no entendimento (implícito)
de que seria exportado. Por conseguinte, cumpriu as estipulações da lei
canadiana, mas nitidamente, não o fez com determinação.
Na
altura, a Connaught Labs era uma espécie de tesouro do governo do Canadá, tendo
sido estabelecida num esforço para criar e nutrir elementos sofisticados da
indústria de Cuidados de Saúde da nação. Era uma empresa de elevado perfil que
tinha desenvolvido uma história de problemas, todos eles tendendo a ser
ignorados e que, silenciosamente, se multiplicaram. Paul Martin, que mais tarde se tornaria Primeiro Ministro do Canadá,
fazia parte do Conselho de Administração
da holding Connaught, que partilhava os directores, o que significa que as
longas discussões sobre o comércio de sangue da empresa não poderiam ter
escapado à atenção e muitos atribuíram grande parte da culpa ao Sr. Martin,
especialmente, no que diz respeito à sua relutância em examinar o assunto.
No
Canadá, as audiências e os inquéritos judiciais geralmente recolhem e declaram
factos sem serem autorizadas a atribuir a culpa ou a responsabilidade, mas este
caso era diferente e o Juiz que chefiava o inquérito, o Meritíssimo Juiz
Justice Krever, tencionava atribuir não só a culpa mas também a
responsabilidade criminal no seu relatório final. Com este conhecimento, o Sr. Martin e outros membros do Gabinete
do Governo do Canadá perseguiram o Juiz Krever até ao Supremo Tribunal do
Canadá, numa tentativa falhada de o impedir de fazê-lo. Houve críticas substanciais
ao Sr. Martin e à *sociedade holding Connaught por se recusarem a cooperar com o
inquérito judicial, obstruindo efectivamente todos os esforços para obter
informações, alegando que uma busca exaustiva dos ficheiros do governo não
encontrou qualquer tipo de registo que tratasse do assunto.
·
Sociedade
holding = Uma empresa criada para comprar e possuir as acções de outras
empresas, que depois controla.
Como
resultado do inquérito judicial, a RCMP (Royal Canadian Mounted Police) do Canadá lançou uma investigação
de cinco anos sobre o assunto e acabou por lançar 32 acusações criminais contra
vários médicos, vários burocratas governamentais, contra o Chefe do Programa de
Sangue da Cruz Vermelha e um Vice-Presidente da empresa americana Armour
Pharmaceutical. A empresa Connaught Labs foi acusada de ofensas criminais, tal
como a própria Cruz Vermelha, mas a Cruz Vermelha foi multada apenas em 5.000
dólares, por distribuir um medicamento contaminado e as acusações criminais
foram retiradas. Após um julgamento que
durou 18 meses, o Juiz decidiu que não havia "nenhum crime", nem nas
acções dos médicos, nem da Connaught Labs ou da Cruz Vermelha, nem da firma
americana, uma decisão que ainda hoje irrita os canadianos, no meio de
acusações de encobrimento governamental maciço e de interferência judicial.
A maioria dos observadores considerou o veredicto um erro judiciário
indesculpável. A Juíza Mary Lou Benotto proferiu o seu veredicto, afirmando:
"Não
houve conduta que mostrasse desrespeito irresponsável e imprudente. Não houve
um afastamento nítido do padrão de uma pessoa razoável. Pelo contrário, a
conduta examinada em pormenor durante mais de um ano e meio confirma acções e
respostas razoáveis, responsáveis e profissionais durante um período
difícil".
Quer
o Primeiro Ministro Martin, quer a Connaught Labs escaparam à responsabilidade
criminal, a Cruz Vermelha canadiana foi destituída dos seus deveres de recolha
de sangue e foi essencialmente levada à falência por sanções e processos civis.
O governo canadiano foi forçado a
resolver um processo de acção colectiva de cerca demais de um bilião de
dólares, mas o resultado final foi que ninguém pagou excepto o povo. A Cruz
Vermelha e Connaught foram processadas por acções civis pagas pelos accionistas
e o acordo de um bilião de dólares do governo, foi pago pelos contribuintes. Os
indivíduos envolvidos evitaram toda a responsabilidade criminal e financeira
pelas dezenas de milhares de infecções e mortes totalmente evitáveis, por SIDA
e Hepatite.
*
A obra completa do Snr.
Romanoff está
traduzida em 32 idiomas e postada em mais de 150 sites de notícias e de
política de origem estrangeira, em mais de 30 países, bem como em mais de 100
plataformas em inglês. Larry Romanoff, consultor administrativo e empresário
aposentado, exerceu cargos executivos de responsabilidade em empresas de
consultoria internacionais e foi detentor de uma empresa internacional de
importação e exportação. Exerceu o cargo de Professor Visitante da Universidade
Fudan de Shanghai, ministrando casos de estudo sobre assuntos internacionais a
turmas avançadas de EMBA. O Snr. Romanoff reside em Shanghai e, de momento,
está a escrever uma série de dez livros relacionados com a China e com o
Ocidente. Contribuiu para a nova antologia de Cynthia McKinney, ‘When
China Sneezes’ com o segundo capítulo, “Lidar com Demónios”.
O seu arquivo completo pode ser consultado em https://www.moonofshanghai.com/ e
http://www.bluemoonofshanghai.com/
Pode ser contactado através do email: 2186604556@qq.com
*
Notas
(todas
em Inglês)
(1) https://www.cbc.ca/strombo/news/canadas-tainted-blood-scandal
A
Look Back At Canada’s Tainted Blood Scandal/ Um olhar retrospectivo sobre o escândalo do sangue
contaminado no Canadá
(2) https://www.cbc.ca/news2/background/taintedblood/bloodscandal_timeline.html
Canada’s
tainted blood scandal: A timeline/ O escândalo do sangue contaminado do Canadá: Cronologia
(3) https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/book-review-bad-blood-tainted-blood-scandal
Book Review: Bad Blood: Tainted Blood Scandal; This
article was originally published in Maclean’s Magazine on June 26, 1995
Crítica de livro: Bad Blood: Tainted
Blood Scandal; Este artigo foi originalmente publicado na revista Maclean's
Magazine em 26 de Junho de 1995
Victims of Canada’s tainted blood scandal to share
$207M compensation fund surplus. The excess money is part of a $1-billion trust
created to settle a class action launched in 1998 against the Canadian Red
Cross, which then administered blood banks
Vítimas do escândalo do sangue
contaminado do Canadá para partilhar o excedente do fundo de compensação de 207
milhões de dólares. O excesso de dinheiro faz parte de um fundo de $1 bilião de
dólares criado para resolver uma acção colectiva lançada em 1998 contra a Cruz
Vermelha canadiana, que, nessa altura, administrava os bancos de sangue
(5) https://www.amazon.ca/Bad-Blood-Tragedy-Canadian-Tainted/dp/1895555515
Bad Blood: The Tragedy Of The Canadian Tainted Blood
Scandal Paperback – April 18 2002
Sangue Mau: A Tragédia do Escândalo
Canadiano do Sangue Adulterado - 18 de Abril de 2002
Artigo traduzido em exclusivo para PRAVDA PT
Copyright
© Larry
Romanoff, Moon of
Shanghai, Blue
Moon of Shanghai, 2022
Tradutora: Maria Luísa de Vasconcellos
Email: luisavasconcellos2012@gmail.com
Websites: http://www.bluemoonofshanghai.com/
https://www.moonofshanghai.com/